A UTI e os Transplantes: Sobrevivendo à Infecção
As Unidades de Terapia Intensiva evoluíram e melhoraram sua performance em anos recentes graças à aquisição e difusão de conhecimento nesta área e em áreas correlatas. Estes fatores, combinados com a aplicação do conhecimento ao “standard of care” em diversas situações ajudaram a melhorar a sobrevida do paciente crítico.
Ao longo dos anos, junto com a incorporação do conhecimento, houve lenta e progressiva mudança da população internada nestas unidades, aumentando a freqüência de hospedeiros com particularidades clínico-cirúrgicas, trazendo junto a necessidade de conhecimento em novas áreas. Entre estes, os imunodeprimidos perfazem progressivamente uma população cada vez mais freqüente. Inicialmente, pacientes portadores de Aids e câncer eram os grupos mais representados. Com a redução da mortalidade em Aids com o desenvolvimento de antivirais eficazes, os pacientes submetidos a transplantes e os portadores de neoplasias passaram a ser os imunodeprimidos mais prevalentes em UTIs.
Os transplantes, tanto de órgãos sólidos como de células hematopoiéticas, hoje se solidificam como opções terapêuticas a doenças de curso crônico ou neoplásicas. Todos os tipos de transplantes, por sua vez, têm interação com o ambiente de terapia intensiva, tanto para permanência após o ato operatório como para tratamento de potenciais complicações associadas.
Entre as complicações mais importantes estão os eventos infecciosos, inseparáveis da condição de imunodepressão com impacto relevante na sobrevida destes pacientes. Por exemplo, em transplante de pulmão, as infecções (grande parte delas ocorrendo ainda durante a internação na UTI) respondem por mais de 50% dos óbitos nos primeiros 6 meses após o transplante. A imunodepressão entre pacientes transplantados é multicausal, podendo-se destacar:
- condições imunodepressoras associadas a doenças preexistentes, como diabetes em transplantados de rim-pâncreas, uremia e inflamação crônica em transplantados renais, doenças linfoproliferativas e seus regimes de condicionamento antes de transplantes de células hematológicas totipotentes;
- quebra de barreiras naturais, por quimioterapia, cateteres, drenos, etc.;
- imunodepressão exógena utilizada para redução dos eventos de rejeição, com graus variados de potência.
Nas UTIs, os eventos infecciosos nesta população podem ocorrer tanto no curso do pós-operatório dos transplantes como intercorrência dos mesmos, como tardiamente no curso do transplante, sendo com freqüência causa de internação na UTI. As infecções que ocorrem ainda no curso do pós-operatório recente são tanto mais freqüentes quanto mais complexo o procedimento cirúrgico. Desta maneira, infecções intra-abdominais graves ocorrem em transplantados de fígado e rim-pâncreas ainda durante a estadia na UTI, assim como infecções respiratórias em transplantados de coração/pulmão. Por outro lado, infecções graves em pós-operatório ainda na UTI são raras em transplantados renais.
No curso do transplante, infecções graves podem ocorrer já como resultado da imunodepressão e da interação do paciente com o meio ambiente, sendo estas infecções diversas, destacando-se as infecções respiratórias.
Dados atuais mostram desfechos ainda insatisfatórios de pacientes transplantados em unidades de terapia intensiva. Em transplante renal, estudo americano revela taxa de mortalidade de pacientes readmitidos em UTI em torno de 11% (contra 6% em outros pacientes na mesma instituição), chegando a 18% para transplantados hepáticos. Estas taxas sobem para 37% em transplantados de pulmão readmitidos na UTI e 49% para transplantados de células hematopoiéticas totipotentes. Em todas as situações, as infecções aparecem como fatores importantes relacionados ao óbito.
Desta maneira, a continuidade do pleno desenvolvimento do conhecimento em terapia intensiva voltado para aumento da sobrevida de pacientes está hoje também relacionada ao desenvolvimento, difusão e aplicação prática de conhecimento de complicações em pacientes submetidos a transplantes de órgãos sólidos, particularmente no que refere a eventos infecciosos.
Embora a temática da infecção em pacientes submetidos a transplantes de órgãos sólidos seja complexa e hoje se constitua em objeto de especialização de infectologistas, aspectos específicos de infecções que mais freqüentemente desenvolvem-se em terapia intensiva ou levam o paciente a reinternar nestas unidades merecem destaque e devem fazer parte do ensino e domínio do intensivista. A seguir, destaco alguns dos itens mais relevantes:
INFECÇÕES PRECOCES RELACIONADAS AO DOADOR FALECIDO
Os transplantes de órgãos sólidos são realizados com freqüência utilizando-se órgãos de doadores falecidos. No Brasil, estes doadores são a grande maioria de transplantados de fígado e pulmão, a totalidade dos transplantes de coração e pâncreas e 40% dos transplantados de rim. Os pacientes falecidos que doam órgãos estão na maioria das vezes em UTIs, com tempo variável de internação, uso de antibioticoterapia e submetidos na grande maioria das vezes a intubação orotraqueal, cateterização urinária e cateterização venosa central. Como é sabido, estes procedimentos invasivos estão associados a aumento de infecções e muitas vezes estas ocorrem por agentes multirresistentes. Desta maneira, os diferentes órgãos doados podem estar colonizados/infectados quando transferidos a um receptor potencialmente não infectado. Têm potencial maior para contaminação os rins e o pulmão diretamente envolvidos em procedimento invasivo.
As conseqüências podem ser a ocorrência de infecções graves nos respectivos receptores. É bem conhecida e documentada a ocorrência de rotura de anastomose de artéria renal em transplantados renais, principalmente por Staphylococcus e Candida (fig. 1), resultando em choque hemorrágico, perda de enxerto e óbito. Também pneumonia e deiscência de anastomose brônquica em transplante de pulmão com sérias conseqüências são descritos.
Desta maneira, a redução do risco de transmissão de infecções por este mecanismo pode ser obtida pela sistemática de coleta de culturas do doador, mesmo que isto ocorra à distância do hospital onde ocorre o transplante. Deve fazer parte da rotina do intensivista que recebe o paciente, em conjunto com a equipe de transplante, checar e cobrar sistematicamente estes resultados e prontamente iniciar o tratamento nos receptores caso haja algum resultado de cultura relevante. Assim, esquemas profiláticos podem e devem ser modificados quando da positivação destas culturas e o tratamento deve ser estendido.
INFECÇÕES PREEXISTENTES QUE SE MANIFESTAM NAS PRIMEIRAS SEMANAS PÓS-TRANSPLANTE
Muitos pacientes são transplantados com alto grau de colonização ou infestação por agentes que podem levar a graves infecções nos primeiros dias pós-transplante e que devem ser reconhecidas por intensivistas.
Entre estas infecções, aquelas causadas por Strongyloides stercoralis são as que mais preocupam, levando-se em consideração a freqüência deste helminto em países de clima tropical.
Faz parte do ciclo de vida deste agente um ciclo pulmonar, que em condições de imunodepressão pode ser intenso, configurando hiperinfestação e levando a quadros pulmonares que podem mimetizar pneumonia bacteriana associada a ventilação mecânica ou ARDS. Taxas de mortalidade são elevadas e o diagnóstico é a simples visualização em microscopia óptica do helminto (fig. 2). O tratamento deve envolver ivermectina e/ou tiabendazol, sendo recomendada muitas vezes profilaxia perioperatória com albendazol a pacientes de maior risco.
Alternativamente, a hiperinfestação pode manifestar-se na forma de graves lesões gástricas ou intestinais com perfuração e peritonite bacteriana secundária.
A pesquisa de larvas de S. stercoralis deve fazer parte da rotina diagnóstica de pneumonias em UTI ocorrendo em período pós-transplante recente.
INFECÇÕES FÚNGICAS EM TRANSPLANTADOS DE FÍGADO
Infecções fúngicas graves são mais freqüentes em transplantes que manipulam diretamente o trato gastrointestinal, particularmente transplantados de fígado. Nestes, estudos prospectivos mostram que até 40% dos pacientes terão alguma infecção fúngica durante o primeiro ano após o transplante, embora mudanças na técnica operatória venham acarretando redução destes índices ao longo dos últimos anos. Destas infecções, 80 a 90% são por espécies de Candida.
O paciente transplantado hepático, em particular aquele que permanece por período mais prolongado em UTI por complicações relacionadas diretamente ao transplante, apresenta em geral os principais fatores de risco para desenvolvimento de infecção por Candida tradicionalmente identificados em pacientes críticos: manipulação de trato gastrointestinal, NPT, cateteres, antibioticoterapia ampla prévia, insuficiência renal e outros. Associando-se estes fatores ao importante grau de imunodepressão, a infecção invasiva por Candida é particularmente freqüente e prevalente. A suspeição deste agente deve fazer parte da rotina do intensivista em quadros infecciosos de origem obscura, em particular após o uso de antibioticoterapia ampla.
A mortalidade de transplantados hepáticos com infecções fúngicas nos três primeiros meses pós-transplante é significativamente mais alta quando comparada à de pacientes sem esta condição. Desta maneira, a profilaxia pode ser de utilidade. De fato, o uso de fluconazol 400 mg/dia mostrou redução da ocorrência de infecção fúngica invasiva em transplantados hepáticos em comparação com aqueles que receberam placebo. Entretanto, não se observou redução de mortalidade, o que provavelmente ocorreu por não direcionamento da terapia para pacientes de maior risco. Estes pacientes são aqueles em diálise, retransplantados e aqueles em uso de antibioticoterapia previamente ao transplante.
INFECÇÕES PULMONARES
As infecções pulmonares são a principal causa infecciosa de reinternação do paciente transplantado em UTI, com taxas de mortalidade elevadas. Estas infecções ocorrem em qualquer período pós-transplante, mas as infecções mais graves e aquelas causadas por agentes oportunistas ocorrem principalmente dentro dos seis primeiros meses após o transplante. Neste período, que corresponde àquele de maior grau de imunodepressão, vários agentes podem ser causadores de infecção:
- Helmintos: Strongyloides stercoralis é mais freqüentemente reportado em transplantados renais. Sua ocorrência, conforme citado acima, tende a ser precoce e pode ocorrer ainda durante a estadia inicial na UTI.
- Bactérias: continuam ocorrendo infecções pulmonares bacterianas em todo período pós-transplante, incluindo infecções associadas a ventilação na primeira passagem pela UTI (em particular em transplante de pulmão, coração e fígado) e aquelas causadas por agentes comunitários como S. pneumoniae. Merece destaque a pneumonia causada por Legionella, que pode ocorrer tanto durante a internação hospitalar (por contaminação de água e transmitida pelo ar) como no ambiente extra-hospitalar. Como característica principal, as infecções são lobares ou lobulares e na evolução apresentam cavitação central (fig. 3).
- Vírus: citomegalovírus é hoje o vírus que mais freqüentemente causa doença em transplantados, embora sua prevalência venha diminuindo progressivamente com o uso de profilaxia ou tratamento preemptivo. Com padrão caracteristicamente intersticial difuso, poupando as bases, pode ter evolução grave se não reconhecido a tempo.
- Fungos: Aspergillus e Cryptococcus são os fungos que mais freqüentemente causam infecções pulmonares em transplantados. Aspergillus geralmente ocorre precocemente e está associado a situações de intensa imunodepressão. Portanto, são mais freqüentes em transplantados de medula e fígado na forma de massas pulmonares e em transplante de pulmão levando a rotura de anastomose brônquica. As taxas de mortalidade são superiores a 50% mesmo com terapia efetiva (fig. 4). Já as infecções por Cryptococcus (fig. 5) tendem a ser mais tardias, ocorrendo igualmente em todos os transplantados de órgãos sólidos (não há muitas descrições em transplante de medula) com curso mais insidioso e menor mortalidade em comparação com Aspergillus. Pneumocystis jirovecii (antes P. carinii) tem ocorrência mais tardia em geral após a suspensão da profilaxia à base de sulfa usada em várias modalidades de transplante. Seu curso clínico tende a ser mais grave, com taxa alta de mortalidade, co-infecção com CMV e associação com barotrauma.
Embora elevadas, as taxas de mortalidade associadas a pneumonia vêm diminuindo progressivamente. Na década de 80, taxas de mortalidade entre 25 e 50% eram relatadas, contra 12% a 16% nas décadas subseqüentes em transplantados de órgãos sólidos. Entre os principais fatores para redução de mortalidade está um diagnóstico mais acurado, para instituição de terapia adequada. Embora métodos não-invasivos sejam importantes e devam ser usados na abordagem destes pacientes (como por exemplo pesquisa de antigenemia para CMV em sangue, antígeno de Legionella na urina e pesquisa de larvas de Strongyloides em escarro), a melhora diagnóstica é obtida com métodos invasivos. A utilização de broncoscopia em transplantados muda a terapia empírica em 48% a 61% dos casos, muitas vezes por um patógeno não suspeitado, contribuindo para redução de mortalidade.
Em relação ao método invasivo, o lavado broncoalveolar parece ser superior ao escovado protegido, principalmente se realizado bilateralmente. Entretanto, a biópsia pulmonar aumenta a chance de diagnosticar um agente infeccioso em 33% dos casos comparada com a realização exclusiva de lavado. A biópsia a céu aberto, apesar de mais agressiva e associada a mais efeitos colaterais, apresenta taxa de positividade maior para encontro de agentes infecciosos.
O intensivista vai deparar-se cada vez mais com infecções respiratórias em UTI e desta maneira deve estar preparado para identificar as causas mais prováveis e solicitar a melhor metodologia diagnóstica possível.
Segundo dados da ABTO (Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos), há aumento progressivo na realização dos principais transplantes de órgãos sólidos no país. O Brasil também começa a destacar-se no cenário dos transplantes de órgãos no mundo.
Fonte:. Dr. Luis Fernando Aranha Camargo. Chefe da CCIH do Hospital do Rim e Hipertensão da Unifesp.