Nutrição em cirrose hepática
O paciente portador de cirrose hepática apresenta múltiplas alterações metabólicas que comprometem profundamente seu estado nutricional. Além disso, qualquer que seja a etiologia, a doença hepática crônica vem sempre acompanhada de complicações, como hemorragia digestiva, ascite ou encefalopatia, que comprometem ainda mais o aproveitamento de nutrientes11, exigindo profundas alterações na terapêutica nutricional. É importante que se conheça razoavelmente as principais vias metabólicas tanto no normal quanto no cirrótico para que se possa fornecer um suporte nutricional adequado
O fígado é um órgão com características de irrigação sangüínea bastante peculiar. Pesa ao redor de 2% do peso corpóreo, no adulto, e recebe cerca de 25% do débito cardíaco, isto é, cerca de 1.500ml de sangue por minuto ou 1ml/grama de tecido hepático/minuto. Cerca de 2/3 deste total é proveniente da veia porta e apenas 1/3 da artéria hepática. O sangue portal contém oxigênio numa quantidade intermediária entre a do sangue arterial e a do sangue venoso sistêmico. Por isso, a veia porta fornece apenas 50% do oxigênio consumido pelo fígado sendo que os outros 50% são fornecidos pela artéria hepática. Destes dados depreende-se que o sangue portal traz ao fígado um grande volume de sangue pobre em oxigênio, ocorrendo exatamente o contrário com a artéria hepática. Esta proporção de sangue portal e sangue arterial não é fixa e varia conforme o estado do paciente em relação à alimentação. O fluxo hepático total mantém-se constante. A proporção de sangue portal aumenta logo após as refeições, enquanto que a do sangue arterial aumenta nos períodos interdigestivos e particularmente no exercício físico29. Assim sendo, o sangue portal chega ao fígado trazendo os nutrientes recém absorvidos nos períodos pós-prandiais, enquanto que o fluxo de sangue pela artéria hepática diminui, com a conseqüente diminuição da oferta de oxigênio. Mecanismo oposto ocorre durante o jejum ou exercício físico. Esta interrelação é complexa e regulada por vários mecanismos. Na realidade, quem comanda a relação parece ser o sangue portal sendo o fluxo pela artéria hepática passivo em relação ao da veia porta. Este equilíbrio encontra-se bastante prejudicado na doença hepática, especialmente na cirrose, devido ao obstáculo portal ocasionado pela doença hepática. Grande parte do sangue porta é desviado para a circulação sistêmica através de colaterais. Como conseqüência, a parte desviada para a circulação sistêmica contém elementos nutricionais, substâncias ainda não metalizadas e hormônios que deveriam passar pelo fígado21. Em contraposição, o fluxo pela artéria hepática é muito aumentado. Ou seja, o fígado recebe proporcionalmente um sangue mais rico em oxigênio e mais pobre em elementos nutricionais e hormônios.
Metabolismo hepático de glicose e ácidos graxos30
A viabilidade de qualquer tecido depende do fornecimento contínuo de ligações com alto conteúdo energético (~P). Estas ligações dependem do fornecimento contínuo de substrato e são fornecidas pelo fígado para si próprio e para todo o organismo, conforme as necessidades energéticas de determinada estrutura. O cérebro e os glóbulos vermelhos dependem basicamente do metabolismo da glicose para fornecer estas ligações. Apenas em situações de jejum prolongado o cérebro e as hemácias se utilizam de uma fonte energética alternativa que é fornecida pelos corpos cetônicos. Em ambas as situações o papel do fígado é capital. Como as vias metabólicas sofrem alterações de forma a garantir o fornecimento energético contínuo, é necessário que se estude as vias metabólicas preferenciais conforme o estado da digestão do indivíduo, considerando-se o estado pós-prandial, o estado de jejum (até 24 a 48 horas) e o estado de jejum prolongado (mais de 48 horas).
Estado pós-prandial
No homem que ingere dieta “normal”, isto é, mista, a glicose é absorvida no intestino e distribuída para todos os tecidos. O seu aproveitamento, contudo, é diferenciado. Ela pode ser utilizada imediatamente para produzir energia ou ser armazenada para ulterior aproveitamento. O cérebro e as hemácias não apresentam estruturas bioquímicas capazes de sintetizar formas de glicose que possam ser armazenadas e é, portanto, oxidada assim que chega a esses tecidos. Os músculos, por sua vez, apresentam essas condições bioquímicas e armazenam a glicose sob forma de glicogênio. O glicogênio muscular não pode ser transformado rapidamente em glicose uma vez que não há, nessas estruturas, a enzima glicose-6-fosfato responsável pela reação de hidrólise glicogênio®glicose. No fígado, pelo contrário, essa enzima encontra-se disponível e a maior parte da glicose que chega ao órgão é armazenada sob forma de glicogênio rapidamente conversível em glicose. O órgão tem capacidade de armazenar cerca de 65g de glicogênio por quilo de tecido hepático. O excesso de glicose não utilizado pelo cérebro e hemácias, e não armazenado pelos músculos e pelo fígado sob a forma de glicogênio, é metalizado de diversas formas. A mais importante é através da síntese de ácidos graxos. Os ácidos graxos são esterificados no fígado e liberados na corrente sangüínea sob a forma de lipoproteínas (VLDL), armazenadas nos adipócitos. As gorduras não utilizadas para produção de energia são armazenadas sob a forma de triglicérides também nos adipócitos.
Estado de jejum
Durante o jejum, o fígado se utiliza dos depósitos de glicogênio para produzir glicose que é continuamente liberada na circulação para consumo imediato. O glicogênio muscular não é alterado nessa condição a menos que o indivíduo esteja fazendo exercícios físicos. À medida que o jejum se prolonga, cada vez mais esgotam-se os depósitos hepáticos de glicogênio e cada vez mais os tecidos utilizam-se dos ácidos graxos armazenados nos adipócitos para produção de energia.
Estado de jejum prolongado
Com o esgotamento das reservas hepáticas de glicogênio, a produção de quantidades adicionais de glicose passa a ser realizada através da gliconeogênese principalmente pela conversão de aminoácidos em glicose. Também o glicerol, liberado pela quebra de triglicérides, pode ser utilizado para a produção de glicose. Os ácidos graxos liberados pela quebra dos triglicérides serão metabolizados no fígado para produzir corpos cetônicos que representam a única alternativa energética para o cérebro e hemácias em condições de jejum prolongado.
Qualquer que seja o estado do paciente em relação à alimentação, há sinais que orientam a via metabólica preferencial a ser seguida de forma a preservar inicialmente o indivíduo com um todo e depois, em condições críticas, as estruturas fundamentais para manter a vida, ou seja, as hemácias para manter o aporte de oxigênio para a mais importante de todas as estruturas, o cérebro. Há dois tipos de sinais que interagem: a concentração de glicose no sinusóide hepático e a ação hormonal. Na concentração de glicose há possivelmente vários mecanismos envolvidos, desde a simples concentração do hidrato de carbono no sinusóide até a proporção de enzimas que participam da síntese ou da degradação do glicogênio. É interessante observar que o metabolismo da glicose e do glicogênio não são uniformes ao longo do lóbulo hepático. Sabe-se que algumas etapas ou reações dão-se preferencialmente em determinadas regiões do lóbulo hepático onde há menor concentração de oxigênio à medida que se progride do espaço porta para a veia centro-lobular. No que se refere aos hormônios, são bem conhecidas as ações da insulina, glucagon e catecolaminas. Tanto a insulina quanto o glucagon afetam o padrão do metabolismo hepático devido a seus efeitos no sistema da adenil ciclase-fosfodiesterase que controla o nível de cAMP no fígado. Os agonistas alfa-adrenérgicos afetam o metabolismo hepático através de seus efeitos no metabolismo do cálcio e interferem na ação de enzimas que dependem deste íon, especialmente a gliconeogênese. Também é interessante referir que em estados de estresse há liberação de catecolaminas cuja ação mais importante na circulação hepática dá-se na artéria mesentérica superior. Há uma vasoconstricção desta artéria e redução do retorno venoso pela veia porta. Em resposta vai haver aumento do fluxo sangüíneo pela artéria hepática que, nesta situação, sofre vasodilatação, favorecendo o aporte de oxigênio para que o fígado possa produzir as ligações altamente energéticas a partir do metabolismo aeróbico da glicose.
Qualquer que seja a via metabólica utilizada, o objetivo final é produzir radicais de alta energia (~P). Esses radicais são produzidos nas mitocôndrias pelo ciclo dos ácidos tricarboxílicos que, numa seqüência clássica de reações, vai terminar por produzir ATP. O importante é que não só a glicose como também os aminoácidos e os ácidos graxos podem servir de substrato para esta reação.
Metabolismo das proteínas plasmáticas31,32
A quantidade de proteína ingerida normalmente ultrapassa aquela necessária para a reposição protêica do organismo. Assim, a proteína da dieta é usada não somente para reposição como também para a produção de energia, cetogênese ou gliconeogênese. Dos 20 aminoácidos primários das proteínas, onze podem ser sintetizados pelo corpo humano e por outros mamíferos e são chamados de aminoácidos não-essenciais ( vide tab 19-1 pg 566 Zakin). Os nove restantes não são sintetizados pelo organismo humano e, portanto, têm que ser supridos a partir da dieta. É importante referir que grande parte dos aminoácidos essenciais são provenientes de vegetais e de microorganismos, isto é, não são encontrados nas carnes dos mamíferos habitualmente utilizados na dieta humana. A proteína de origem animal é considerada de melhor qualidade do que a de origem vegetal porque esta última é pobre nos aminoácidos essenciais lisina, triptofano e metionina. Este aspecto é particularmente importante em alguns hábitos alimentares principalmente em se considerando que para a síntese protêica são necessários os 20 aminoácidos simultaneamente. Desses dados percebe-se o quanto é importante uma dieta balanceada tanto em proteína de origem animal quanto de origem vegetal. Nos intestinos, as proteínas ingeridas são quebradas em aminoácidos e como tal são absorvidas. Esses aminoácidos constituem a base fundamental para a síntese de todas as proteínas do corpo. Além disso, os aminoácidos são precursores de outras moléculas fundamentais para a vida, como hormônios, neurotransmissores, coenzimas, entre tantas outras. Os aminoácidos não utilizados para a síntese de proteínas ou dessas outras moléculas podem ser metabolizados para produzir energia. O nitrogênio resultante será incorporado à amônia, aspartato ou glutamato. Qualquer uma destas substâncias vai servir como substrato para produzir uréia pelo fígado. Alternativamente, os aminoácidos não utilizados para síntese protêica podem ser incorporados à glicose, corpos cetônicos ou gorduras e, assim, constituírem-se em fonte de energia a ser utilizada a curto, médio ou longo prazo, conforme as necessidades do organismo. Diferentemente dos demais, os aminoácidos de cadeia ramificada não são catabolizados pelo fígado, mas captados pelos músculos e aí transformados nos ceto-ácidos correspondentes.
Após a ingestão, as proteínas são quebradas em aminoácidos e estes são levados até o fígado pelo sangue portal. Alguns são metabolizados no próprio órgão enquanto que outros são liberados na circulação sistêmica. A presença de alguns aminoácidos no sangue portal produz a liberação de insulina, como é o caso da leucina. A insulina é um hormônio anabolisante pois induz à síntese protêica a partir dos aminoácidos circulantes. Outros aminoácidos induzem a liberação de glucagon, como é o caso da cisteína, glicina, serina, entre outros. O glucagon é um hormônio catabolizante pois induz a gliconeogênese a partir de aminoácidos circulantes provenientes da dieta ou da quebra de proteína muscular. Assim, percebe-se que a síntese ou degradação protêicas estão associados a controles hormonais dos quais a insulina e o glucagon são os mais conhecidos, embora muitos outros participem deste processo. O cortisol, catecolaminas, citocinas e hormônio tireoidiano em excesso inibem a síntese protêica. Já o hormônio de crescimento, níveis moderados de hormônio tireoidiano, hormônios androgênicos e esteróides anabolisantes todos promovem a síntese protêica.
Durante o jejum, as proteínas podem desempenhar papel capital na produção de energia. Como já se disse, as reservas de glicose e glicogênio ficam depletadas em 24 a 48 horas. Isto não representa um problema para os músculos ou para o fígado, pois podem obter energia rapidamente através de oxidação de ácidos graxos. Todavia, as hemácias e o cérebro dependem da presença de glicose, que é obtida a partir do glicerol, de corpos cetônicos ou de aminoácidos glicogênicos, como é o caso da alanina, resultante da degradação muscular (catabolismo).
Para resumir, o metabolismo dos aminoácidos é capital para o funcionamento harmônico do organismo, tanto em condições de saúde quanto na doença. Alguns deles pertencem à categoria dos poucos constituintes da dieta que não são passíveis de síntese pelo organismo humano e, portanto, devem ser ingeridos. De modo bastante genérico, ou o aminoácido é incorporado na síntese de proteínas e moléculas complexas ou é metabolizado. Cada aminoácido ou grupo de aminoácidos seguem vias metabólicas próprias. De qualquer forma, o nitrogênio da sua molécula é quase sempre metabolisado em amônia diretamente ou por meio de reações intermediárias envolvendo aspartato e glutamato. A via final é a formação de uréia, realizada pelo fígado. No que se refere ao carbono da molécula dos aminoácidos, o metabolismo segue vias que dependem do seu tipo. Há os aminoácidos chamados de glicogênicos cuja via final é a produção de glicose para consumo imediato ou para reserva sob a forma de glicogênio, e os chamados de cetogênicos cuja via final é a formação de corpos cetônicos que podem ser utilizados para produção de energia através do ciclo dos ácidos tricarboxílicos ou para reserva sob a forma de ácidos graxos. Embora haja vias exclusivas para alguns aminoácidos, a maioria deles pode seguir uma ou outra via, de acordo com as necessidades metabólicas do momento.
Alterações nutricionais na cirrose hepática
O paciente com doença hepática crônica apresenta alterações nutricionais marcantes e bastante óbvias à simples observação. Apesar disso, pouco se sabe a respeito dessas alterações especialmente em fases não muito avançadas da doença.
Metabolismo dos hidratos de carbono
Existem 5 condições observadas na doença hepática crônica que são vistas no metabolismo dos carboidratos: hipoglicemia, acidose láctica, esteatose hepática, coteje associada ao álcool e hiperglicemia.
Hipoglicemia30
Esta condição não é observada nos com doença hepática crônica mesmo em fases terminais. Deve-se prestar atenção para falhas do método de dosagem de glicose que, ao sofrer interferência de taxas altas de bilirrubinas, algumas vezes pode fornecer resultados erroneamente baixos. A hipoglicemia só é observada em três condições no hepatopata: na insuficiência hepática aguda grave (“hepatite fulminante”), na hipoglicemia induzida pelo álcool e no paciente com ascite e sepse severa25. Este último tipo de hipoglicemia é de longe o mais comum e pode ocorrer também em normais sob o efeito de grandes quantidades de álcool. O etanol inibe a síntese de glicose tanto a partir dos aminoácidos quanto a partir do lactato e do glicerol e não tem ação na formação de glicose a partir da quebra de glicogênio22. Assim, ela ocorre, mesmo em normais, quando se ingere grande quantidade de álcool no momento em que as reservas de glicogênio estão muito diminuídas, ou seja, após jejum de 24 a 48horas. O paciente com cirrose hepática tem capacidade de armazenamento de glicogênio diminuída e, portanto, sofre mais precocemente as conseqüências do jejum. Todavia, estas conseqüências não são manifestadas por hipoglicemia. Este fato terá importância no tratamento nutricional e será abordado mais adiante.
Acidose láctica30
Aparentemente esta condição tem sido supervalorizada. O fígado normal utiliza lactato para produzir glicose nos períodos de jejum e, mesmo doente, tem pequena capacidade de produzir lactato. Há apenas uma condição na qual o órgão doente produz maior concentração periférica de lactato: na ingestão aguda de álcool. Na realidade, ele não está produzindo lactato, apenas deixando de captar o lactato que chega pela circulação portal, lançando-o diretamente na corrente sangüínea, aumentando seus níveis. De qualquer forma, a quantidade de lactato que chega ao sangue sistêmico é facilmente tamponado pelos sistemas circulantes disponíveis, ou seja, não produz acidose. Esta ocorre quando há colapso circulatório por ingestão alcoólica intensa. Outra causa importante, e muito mais comum, de acidose lática no hepatopata crônico é a presença de complicações que não são facilmente detectadas nessa condição. Dentre essas, a mais importante é a infecção. As dificuldades para seu reconhecimento talvez tenham sido a principal causa da supervalorização da acidose lática no hepatopata dito “terminal”. Na realidade, é a infecção de difícil diagnóstico que produz a acidose lática observada algumas vezes e não a insuficiência hepática de per si. Devemos lembrar que as três principais infecções que ocorrem no hepatopata são de difícil reconhecimento clínico uma vez que freqüentemente não produzem febre, e as alterações gerais ou laboratoriais de infecção passam desapercebidas. Devemos sempre procurar focos pulmonares e urinários, além da muito citada peritonite bacteriana primária ou espontânea. Outro aspecto do hepatopata que pode mascarar de forma importante infecções abdominais graves é a ascite. Nessa condição, o paciente não apresenta sinais clássicos de peritonite. Se formos esperar o abdome em tábua da úlcera péptica perfurada ou da dor localizada no ponto de McBurney na apendicite aguda, jamais conseguiremos fazer esses diagnósticos. É perfeitamente comum encontrarmos um paciente cirrótico com ascite e úlcera perfurada sem dor e nenhum sinal de irritação peritonial. Assim, esses pacientes desenvolvem acidose lática como evolução de um processo infeccioso grave e não como manifestação simples da insuficiência hepática. O corolário destes dados é que devemos sempre procurar por complicações no hepatopata que se apresenta com acidose lática.
Cetose induzida pelo álcool30
A cetose leve é resposta fisiológica ao jejum prolongado. A cetose intensa é observada em pacientes descompensados por diabete insulino-dependente. Tem sido observado um certo grau de cetose em pacientes com ingestão maciça e prolongada de álcool acompanhada de jejum prolongado, refletindo provavelmente o efeito do jejum prolongado no metabolismo dos ácidos graxos e de fisiopatologia ainda não claramente compreendida.
Esteatose hepática30
A esteatose hepática é achado freqüente nos métodos de imagem que avaliam o fígado, inclusive nas biópsias, mesmo sem doença intrínseca do órgão. A gordura é triglicéride proveniente do metabolismo de ácidos graxos e glicerol. Para se tentar compreender o significado da esteatose hepática deve-se entender que existe continuamente uma troca de ácidos graxos entre o tecido adiposo e o fígado. O balanço entre o armazenamento de triglicérides no fígado e no tecido adiposo é finamente regulado e qualquer desvio facilita o depósito hepático. Existem várias razões para isso. Em primeiro lugar, a captação de triglicérides pelo fígado é dependente da concentração plasmática de ácidos graxos. À medida que sua concentração aumenta, mais o fígado capta. A segunda razão é que o fígado tem capacidade limitada de metabolizar ácidos graxos. A terceira razão pela qual o fígado acumula triglicérides com facilidade é que o órgão tem também capacidade limitada em secretar triglicérides sob a forma de VLDL. Assim, de uma forma simples, o fígado capta ácidos graxos do sangue numa velocidade muito maior que sua capacidade de metabolizá-lo ou excretá-lo. A conseqüência mais óbvia disso é que o achado de esteatose hepática é comum, sem ter qualquer significado quanto à presença ou ausência de doença hepática. A função hepática normal é assim mesmo. Por outro lado, todas as condições metabólicas que alteram esse equilíbrio produzem esteatose como resposta fisiológica. Assim, no diabete, que apresenta como característica uma lipólise aumentada, vamos observar esteatose22. O mesmo acontece no jejum prolongado e no uso prolongado de corticosteróides. Aparentemente é o que acontece também na ingestão abusiva de álcool, pelo menos numa etapa inicial: a droga aumenta a lipólise periférica, reduz a capacidade hepática de oxidação de ácidos graxos e, além disso, é um excelente substrato para a síntese de ácidos graxos. Assim, deve-se reforçar que a esteatose de per si nada significa no que se refere à função ou doença hepáticas, pelo menos em condições crônicas. Ela é apenas uma resposta normal a alterações nutricionais ou metabólicas.
Da mesma forma, a administração de grandes quantidades de hidratos de carbono, como às vezes é verificado na nutrição enteral ou parenteral, produz esteatose hepática. Esse acúmulo de gordura (ácidos graxos) deve-se à estimulação de sua síntese pela administração exagerada de hidratos de carbono que provavelmente excede a capacidade do fígado de transformá-los em triglicérides.
Evidentemente não se quer dizer com isso que a esteatose hepática não possa ter um significado clínico maior. As alterações descritas refletem, de modo geral, resposta adequada do fígado a um desbalanço nutricional ou metabólico. Existem, contudo, depósitos de gorduras no fígado como conseqüência de ações tóxicas ao órgão, produzindo um quadro de hepatite, fato observado com muitas drogas hepatotóxicas, das quais o tetracloreto de carbono é exemplo típico. Um exemplo clínico muito referenciado é a hepatite que se segue ao uso abusivo do paracetamol, utilizado na Inglaterra como tentativa de suicídio. Muitas outras, de observação mais raras e idiossincrásicas, são descritas: cloropromazina, haloperidol, benzodiazepínicos, eritromicina, derivados imidazólicos, ranitidina, cimetidina, fenitoína28, etc.
Hiperglicemia30
Anormalidades no teste de tolerância à glicose são muito comuns no paciente com cirrose hepática3,13. Por outro lado, a não ser nos pacientes com alteração no metabolismo do ferro (hemocromatose), esta anormalidade do GTT não está associada às alterações vasculares clássicas do diabete. Uma outra alteração bastante conhecida do cirrótico diz respeito à insulina, cujos níveis periféricos encontram-se aumentados. Além disso, o fígado insuficiente metabolisa mais lentamente a glicose ingerida. Diversos autores demonstraram que estes pacientes na realidade produzem uma quantidade normal de insulina pelo pâncreas. No normal, 50% da insulina produzida é metabolizada numa primeira passagem pelo fígado e os outros 50% são liberados na circulação sistêmica. No cirrótico há dois mecanismos que produzem aumento da concentração periférica do hormônio: anastomoses portossistêmicas que desviam o sangue portal sem passar pelo fígado, e menor metabolismo da insulina pelo próprio fígado. Assim, deveríamos ter hipoglicemia no cirrótico que, como já vimos, não ocorre. O que se verifica é que, na realidade, há uma resistência periférica aumentada à insulina, provavelmente um mecanismo adaptativo aos níveis altos de insulina no sangue periférico, daí o GTT alterado.
Metabolismo de aminoácidos e proteínas32
Apesar de haver diversas teorias a respeito da fisiopatologia da encefalopatia na doença hepática, a mais aceita, e novamente cada vez mais valorizada, é aquela que envolve o aumento de amônia no sangue circulante e, conseqüentemente, no cérebro. A principal fonte de amônia é representada pelo metabolismo de glutamina pela parede intestinal e, em especial, pela mucosa. É bem conhecido o fato de que este aminoácido é a principal fonte energética do intestino delgado e é proveniente tanto dos músculos (principalmente) quanto de outros tecidos. Esse processo resulta na produção de amônia que é liberada na veia porta e através dela normalmente chega ao fígado. No paciente com cirrose há tanto desvio direto para a circulação sistêmica, quanto metabolismo insuficiente pelo órgão doente. Já se disse que normalmente a amônia é transformada em uréia pelo fígado. Outra fonte de produção de amônia é o rim. A glutamina circulante é captada pelos rins e metabolizada a amônio (NH3). Esse íon tem grande importância tanto na sua liberação na circulação sistêmica como amônia (radical NH4+), quanto na manutenção do equilíbrio ácido-básico pelos rins. Outro dado importante em relação à encefalopatia e à amônia é que especialmente o íon amônio (NH3) atravessa com facilidade a barreira liquórica. No cérebro, a amônia é normalmente incorporada ao glutamato para formar glutamina. O glutamato é um neurotransmissor excitatório. Como apresenta concentração cerebral diminuída (pela incorporação à amônia), resulta numa diminuição da excitação neuronal e, conseqüentemente, encefalopatia.
Por outro lado, já se disse também que o paciente portador de cirrose hepática apresenta disfunções hormonais severas e, dentre elas, aumento dos níveis periféricos de glucagon. Ora, esse hormônio é catabolizante e promove a produção de energia principalmente a partir da proteína muscular. Por isso, esse tipo de doença hepática confere um aspecto peculiar ao paciente: grande deficiência de músculo esquelético com tronco volumoso (ascite)25. Essa disfunção hormonal tem conseqüências adicionais importantes na gênese da encefalopatia. Devido à ação catabolizante do glucagon na proteína do músculo esquelético, vão ser liberados aminoácidos tanto aromáticos (triptofano, fenilalanina e tirosina) quanto de cadeia ramificada para a circulação sistêmica23. Os aminoácidos de cadeia ramificada (leucina, isoleucina e valina) serão utilizados pelo fígado para gliconeogênese. Com isso vai ocorrer um desbalanço entre estes e os de cadeia aromática que estarão, como conseqüência, aumentados24. Esse desbalanço também é responsabilizado pelo aparecimento de encefalopatia nos cirróticos. Como os aminoácidos de cadeia ramificada competem com os de cadeia aromática para atravessar a barreira hematoencefálica, vai haver um aumento, no cérebro, dos aromáticos que promovem a síntese dos chamados falsos neurotransmissores (octopamina e feniletanolamina), competindo com os verdadeiros neurotransmissores (dopamina e nor-epinefrina). Além disso, os aumentos dos níveis de triptofano podem produzir maior síntese de serotonina, um conhecido depressor da consciência.
Embora não seja objetivo deste trabalho, existem diversas outras hipóteses ou substâncias responsabilizadas na gênese da encefalopatia no hepatopata crônico. Citam-se, entre elas, as hipóteses do ácido gama-aminobutírico (GABA), da serotonina, ácidos graxos de cadeia curta, mercaptanas, manganês e zinco4,5,10,14,19.
Terapêutica nutricional
Quando se fala em terapêutica nutricional na cirrose hepática é importante definir com precisão o objetivo que se quer alcançar, bem como avaliar as condições do paciente do ponto de vista nutricional. Os cirróticos podem apresentar uma série de condições clínicas que orientam diferentemente o tratamento a ser empregado20. Deve-se precisar se o paciente está com cirrose compensada ou descompensada e, neste caso, que tipo de descompensação apresenta, pois admitem abordagem nutricional e geral completamente diferente. Entre os compensados, isto é, sem complicações, pode-se simplesmente manter da melhor forma possível seu estado nutricional, ou então, pode-se querer reverter o máximo possível o consumo de massa muscular tão característico de estadios mais avançados da doença. Nas formas descompensadas pode-se também controlar a ascite ou a encefalopatia, quando essas complicações aparecem de forma espontânea ou como parte de outras complicações como é o caso das infecções, tão comuns na cirrose hepática.
Abordagem nutricional na cirrose compensada
A primeira atitude do médico frente a um paciente com cirrose compensada é observar que a prescrição de dietas muito restritivas, sem indicação precisa, pode produzir efeito oposto ao desejado. Salvo condições muito claras, como é o caso de pacientes com colestase intensa, não existe indicação cientificamente comprovada para limitar o uso deste ou daquele componente da dieta. É comum que se observe orientação dietética para não ingerir gorduras ou ingerir o máximo possível de hidratos de carbono. Na realidade, o paciente nessas condições deve ingerir uma dieta equilibrada em gorduras, proteínas e hidratos de carbono como uma pessoa normal, sem qualquer restrição15. Por outro lado, pacientes com coletase intra-hepática podem apresentar uma menor quantidade de pigmentos biliares no intestino e, daí, ter dificuldades em digerir alimentos gordurosos. O bom senso indica que se deve restringir ingestão gordurosa suficiente para evitar diarréias espoliativas decorrentes de má-absorção de gorduras. O paciente deve ajustar a quantidade de gordura de modo a produzir uma ou duas evacuações diárias. É o número de evacuações que vai definir se a quantidade de gordura da dieta pode ser aumentada ou diminuída. Em qualquer condição, é aconselhável que o paciente realize várias refeições por dia ao invés das três convencionais. É preferível realizar pequenas refeições, várias vezes ao dia, a duas ou três refeições copiosas. Existem dados consistentes demonstrando que pequenas refeições com maior freqüência podem reverter o estado catabólico observado com três refeições1,18. Essa recomendação é fácil de ser compreendida uma vez que se sabe que o cirrótico tem reserva de glicogênio diminuída e pouca gordura para ser utilizada como substrato energético. Nessas condições, o paciente vai se utilizar de proteína muscular agravando o consumo das proteínas corpóreas. A dieta múltipla fornece substrato de forma mais contínua, permitindo o estado anabólico mesmo com um fornecimento protêico da ordem de 0,8 a 1,0g/kg/dia, tanto nos compensados quanto nos descompensados25. Apesar disso, não se deve indicar restrição protêica de qualquer tipo, especialmente no paciente compensado, salvo em condições clínicas muito claras.
Cerca de 30 a 35Kcal/kg de peso corpóreo por dia são suficientes para a manutenção de um paciente com cirrose estável, em condições de repouso relativo. No entanto, para os mal-nutridos podem ser necessárias 50 a 55Kcal/kg/dia para reter 1g de proteína25.
As emulsões lipídicas são bem toleradas pelo hepatopata crônico, principalmente porque dependem pouco do fígado para seu metabolismo. Além disso, descreve-se um efeito de manutenção das reservas protêicas25.
Um aspecto importante nas recomendações nutricionais do hepatopata crônico diz respeito à ingestão de sal. É sabido que estes pacientes apresentam retenção de sódio mesmo em etapas muito iniciais da doença, quando ainda a ascite e o edema não se manifestaram. Por isso, a restrição de sódio deve ser indicada em condições muito claras uma vez que as dietas restritivas em sódio acabam por diminuir o apetite, agravando a desnutrição (vide adiante).
Abordagem nutricional na cirrose descompensada
O paciente portador de cirrose hepática freqüentemente desenvolve complicações ao longo da evolução da doença. A hipertensão portal é constante e gradativa. Existem 4 formas clássicas de descompensação do paciente com cirrose e hipertensão portal: hemorragia digestiva alta, hiperesplenismo, ascite e encefalopatia. A hemorragia digestiva alta e o hiperesplenismo não comportam abordagem nutricional, pelo menos no sentido estrito do termo. Já para a ascite e para a encefalopatia, a terapêutica nutricional é ampla e deve ser conduzida baseada em critérios fisiopatológicos razoavelmente bem definidos.
Abordagem do paciente com ascite
Como já se disse, o paciente com cirrose apresenta sempre algum grau de retenção de sódio e esta retenção é proporcional ao estadio da doença, ou seja, quanto mais avançada, maior a retenção. Juntamente com a retenção de sódio, vamos ter retenção de água. Como regra prática, devemos saber que cada grama de sal retém 200ml de água. Como conseqüência, vamos ter formação de edemas e depósito de líquidos intra-cavitários, principalmente abdominal (ascite). Isto significa que se restringirmos a ingestão de sal, vamos evitar o acúmulo de líquidos e, conseqüentemente, de ascite. Ao lado do repouso, esta é a primeira abordagem que deve ser utilizada nesta complicação da hipertensão portal. A restrição de sódio não deve ser prescrita de forma aleatória. O ideal é avaliar a capacidade de excreção de sódio de cada paciente. Essa avaliação é realizada com o paciente em repouso relativo (internado) por 2 ou 3 dias. Nessa situação, toda a diurese do paciente é guardada por 24h e dosada a quantidade de sódio na urina. Pacientes que apresentam excreção urinária de sódio extremamente baixa (10mEq/litro ou menos), normalmente apresentarão maior dificuldade no controle da retenção hídrica. Por outro lado, aqueles com retenção moderada (20 a 40mEq/litro de urina) possivelmente responderão apenas com restrição de, por exemplo, 40mEq de sódio na dieta. Assim, percebe-se que a restrição de sal deve ser conduzida de acordo com a capacidade de excreção de sódio pelo paciente. Outro aspecto muito importante a ser considerado é que dietas muito restritivas em sódio (10mEq, por exemplo) acabam por desnutrir o paciente devido a sua pouca palatabilidade. Por isso recomenda-se fazer um balanço entre a recomendação de restrição e a capacidade do paciente de aceitar uma dieta difícil de ser ingerida. Nessas condições, deve-se liberar outros temperos para tornar a restrição mais palatável. Pode-se usar alho, cebola, pimenta (mesmo!), vinagre, azeite, limão, e assim por diante. Outro recurso que facilita a tarefa do médico, e o apetite do paciente, é o uso de produtos dietéticos substitutos do sal. Existem no mercado diversas marcas. Nestes produtos, a maior parte do NaCl é substituída por KCl. De modo geral, 1g destes sais contém 5mEq de sódio, lembrando que 1g de sal (NaCl) contém ao redor de 17mEq de sódio. Pode-se recomendar um ou dois gramas destes produtos por dia, dependendo da excreção urinária de sódio. Deve-se tomar cuidado com o paciente que usa esse tipo de substituto do sal associado ao uso de diuréticos poupadores de potássio (espironolactona, trianterene), pois podem favorecer o aparecimento de hipercalemia severa. Assim, deve-se avaliar periodicamente os níveis sangüíneos de potássio. O próximo passo, se não conseguirmos controlar a retenção apenas com repouso e restrição de sal, é o uso de diuréticos. Inicia-se com doses baixas de espironolactona (25 a 100mg/dia). Como se trata de diurético de ação lenta, deve-se aguardar alguns dias antes do próximo passo (depois de 3 a 4 dias), que é associação com diuréticos de alça (furosemida, ácido etacrínico, tiazídicos). Prefere-se associar a espironolactona com a furosemida que são os mais potentes. Pode-se utilizar até 400 a 600mg de espironolactona por dia, associada a 120 a 160 mg de furosemida. O trianterene pode apresentar vantagem sobre a espironolactona por ter início de ação mais rápido, entretanto é menos potente. O ácido etacrínico pode ser utilizado em lugar da furosemida. Os tiazídicos são menos potentes27.
Não se deve iniciar o tratamento da ascite com diuréticos de alça (furosemida) pois não se está obedecendo aos princípios fisiopatológicos da complicação. Deve-se sempre iniciar pelos diuréticos distais, lembrando-se, quando são prescritos (ou as doses aumentadas), de aguardar 3 ou 4 dias para se observar o início de seus efeitos (espironolactona). A furosemida pode ser utilizada isoladamente apenas em pacientes com edema periférico significativo, facilmente mobilizável. O líquido intra-peritonial é de mobilização lenta e difícil (no máximo 900 ml/dia). Por isso, uma ótima resposta é obter perda líquida diária de 500 ml27.
O tratamento da ascite, seguindo os passos assinalados, é gradual e demanda tempo do médico, exames de controle, e internação mais prolongada, o que significa maiores gastos. Na última década tem-se preconizado o esvaziamento rápido do líquido intra-peritonial por meio de punções. Recomenda-se esvaziar 6 litros do líquido por punção, com reposição de expansores do plasma. Pode-se utilizar de albumina na dose de 5 a 6 g por litro de líquido ascítico drenado.
É interessante referir que alguns autores descrevem diminuição das cãibras, tão comuns nos cirróticos que recebem diuréticos, com infusões semanais de albumina humana. Atribuem a dor muscular à hipovolemia induzida pelos diuréticos9.
Mais recentemente ainda, tem-se realizado apenas punções, sem o emprego de expansores. Evidentemente esta última opção é rápida e a mais barata. Contudo, é importante avaliar cuidadosamente qual doente tem condições de suportar a drenagem sem o uso de expansores. Geralmente é aquele que apresenta função renal mais preservada, com sódio plasmático mais próximo do normal (ao redor de 130mEq/litro). Essas punções são eficientes, mas apresentam duas desvantagens importantes: uma é um método invasivo que exige todos os cuidados de antissepsia para evitar contaminação da cavidade, e a outra desvantagem é nutricional. Estaremos desprezando proteínas do próprio paciente que, pela própria doença, apresenta dificuldades de síntese (insuficiência hepática). Por isso, observa-se importante consumo muscular quando se realiza com freqüência este tipo de procedimento26. Mesmo após a drenagem, é necessário o uso de diuréticos cujas doses serão tateadas para manter o paciente livre da ascite.
Sempre que tratamos um paciente com ascite pelo uso de diuréticos ou de parecentese vai-se observar uma discreta descompensação da função renal que se manifesta por aumento dos níveis de uréia e de creatinina. Essa descompensação é óbvia pois estamos sempre produzindo uma contração do intravascular num paciente que já é cronicamente hipovolêmico (pela própria insuficiência hepática). Algumas vezes vamos observar dificuldade maior no controle da ascite ou agravamento mais ou menos rápido do derrame intra-peritonial, geralmente acompanhados de aumento dos níveis de uréia e de creatinina. Nessa situação deve-se sempre afastar infecções associadas, muito comuns no hepatopata e freqüentemente não acompanhadas pelos sinais clássicos de febre, leucocitose ou hiperglicemia. Três são os quadros infecciosos mais comuns: infecção urinária, broncopneumonia e, especialmente, peritonite bacteriana espontânea. Nessa hipótese, só vamos controlar a ascite com o uso de antimicrobianos adequados. É por isso que muitas vezes dizemos que o melhor diurético para o hepatopata crônico que apresenta descompensação súbita da ascite é um antibiótico.
Abordagem do paciente com encefalopatia33
Quando se fala em abordagem nutricional no paciente com encefalopatia por doença hepática crônica é preciso definir com precisão o que é encefalopatia, qual sua intensidade e, não menos importante, se o seu aparecimento foi espontâneo ou desencadeado por alguma complicação da doença hepática. Esta última talvez seja a informação mais valiosa para orientar o tratamento e definir o prognóstico do doente. De início, devemos lembrar que existem três tipos de encefalopatia34 : 1-a encefalopatia do paciente com insuficiência hepática aguda grave (hepatite “fulminante”), 2-a encefalopatia hepática, que se desenvolve na evolução natural de uma doença hepática crônica ou nas suas complicações e 3- a encefalopatia porto-sistêmica, que se desenvolve na presença de anastomoses porto-sistêmicas naturais ou criadas cirurgicamente. Cada um desses tipos apresenta quadro clínico semelhante, porém com prognóstico e tratamento completamente diferentes. A encefalopatia do paciente com hepatite “fulminante” tem mau prognóstico e cerca de 80% deles morrem apesar de tratamento adequado3. Esse tipo de encefalopatia não será abordado neste capítulo. A encefalopatia hepática tem prognóstico menos sombrio e cerca de 80% dos pacientes sobrevivem à complicação. Nesses casos, é importante definir com precisão se a encefalopatia foi desencadeada por alguma complicação ou se surgiu naturalmente no estadio terminal da doença hepática. A maior probabilidade é de que surja associada a uma complicação da doença hepática crônica ou associada a medidas terapêuticas. Dentre as medidas terapêuticas podemos lembrar o uso abusivo, não controlado, de diuréticos ou laxantes. Ambas as situações produzem contração do intravascular, piora da função renal, aumenta os níveis de uréia e da encefalopatia. Dentre as complicações da doença hepática crônica podemos lembrar a hemorragia digestiva alta e os processos infecciosos clínicos ou inaparentes, vômitos, diarréias, etc. Dentre os processos infecciosos citam-se a peritonite bacteriana espontânea, as broncopneumonias e infecções urinárias. Estes três tipos de infecção respondem pela grande maioria das complicações infecciosas observadas no hepatopata crônico. A encefalopatia porto-sistêmica surge geralmente em uma de duas situações: obstipação intestinal ou consumo excessivo de proteína de origem animal. Praticamente 100% desses pacientes sobrevivem com terapêutica adequada.
Qualquer que seja a fisiopatologia da alteração neuro-psiquiátrica, podemos classificá-la em diversos graus conforme a intensidade do quadro central. Existem diversas classificações para este fim. Uma bastante útil é apresentada na tabela a seguir.
Entra tabela 3 pg 611 Zakim
O tratamento da encefalopatia do hepatopata crônico tem três objetivos principais:
1-identificar e corrigir os fatores precipitantes;
2-reduzir a quantidade de produtos nitrogenados no intestino e no sangue;
3-evitar as complicações iatrogênicas principalmente medicamentosas.
Evidentemente existem inúmeras relações entre a encefalopatia e a nutrição do paciente hepatopata. A abordagem nutricional permite corrigir ou controlar a complicação e, mais ainda, fornecer uma condição de anabolismo que vai resultar em melhoria do estado geral do paciente, inclusive tornando-o mais resistente ao aparecimento de outras complicações como ascite ou infecção. Nesta seção serão discutidas, entre outras, algumas medidas clássicas, para se atingir aqueles objetivos.
1- Restrição protêica: é a abordagem mais conhecida e surgiu no século passado quando Eck descreveu a “intoxicação pela carne” em cães submetidos à anastomose porto-cava. Existem inúmeros trabalhos mostrando que a restrição de proteína animal controla de fato a encefalopatia. Por isso, esta restrição é sempre colocada em primeiro lugar no tratamento da complicação2. Todavia, vários aspectos devem ser levados em conta. A carne de origem animal, especialmente a dos mamíferos, é um componente importante da dieta ocidental. A sua restrição com freqüência leva a agravamento da condição nutricional do paciente devido à persistência do estado catabólico. Há diversas formas de encarar o problema. Em primeiro lugar, deve-se dizer que o hepatopata mantém-se em estado de equilíbrio nitrogenado com ingestão de 0,5 a 1g de proteína por quilo por dia4,6. É o cirrótico por álcool o que exige maior oferta protêica, especialmente logo após a interrupção da bebida (da ordem de 1g/kg/dia7). Os demais mantém um equilíbrio protêico com valores menores. Os hepatopatas com encefalopatia geralmente apresentam-se bastante desnutridos, devendo-se procurar um estado de anabolismo. Sabe-se que menos de 10% dos encefalopatas apresentam necessidade de restrição de proteína animal. Assim, um bom início é não restringir proteína animal, pelo menos até que se tenha a certeza de que se trata de paciente com intolerância à carne. Nesta última condição, devemos restringir a proteína animal a zero e, a seguir, ir aumentando progressivamente até identificar o nível da intolerância4. Aumenta-se 10g/dia até se obter um mínimo de 0,5g/kg/dia (ao redor de 35 a 40g em adulto de peso normal - 70 a 80kg). Evidentemente este é o nível mínimo para se manter o equilíbrio nitrogenado. Não vamos obter anabolismo com estas quantidades. Devemos lembrar que, em média, 100g de carne bovina equivalem a cerca de 50g de proteína.
Ainda no que se refere à proteína animal, observa-se que há os que proscrevem dietas contendo proteínas do leite e os que procuram fornecer praticamente toda a proteína animal a partir do peixe. De modo geral, a dieta contendo proteínas de mamíferos (carne de vaca) é a que mais contém aminoácidos de cadeia ramificada, em segundo lugar vem a carne de peixe (ou carnes brancas - aves) e, por último, a proteína derivada do leite4. Assim, devemos tomar precauções para não recomendar uma dieta monótona, que dificilmente será tolerada a longo prazo, como é o caso da carne de peixe. A melhor é aquela que contempla de forma razoavelmente balanceada todas as fontes de proteína animal.
2-Proteína vegetal: Há mais de 20 anos descobriu-se que o hepatopata tolera melhor proteínas de origem vegetal do que as de origem animal4. Existem muitos trabalhos confirmando este achado. Provavelmente este fato deve-se à diferente composição de aminoácidos dessas proteínas4. Outro fator relacionado com o efeito benéfico desta fonte protêica é que os vegetais, de modo geral, são laxantes, isto é, aceleram o trânsito intestinal e produzem dois efeitos favoráveis ao controle da encefalopatia: o próprio efeito laxante e uma maior quantidade de proteína excretada (não absorvida). Evidentemente, esses efeitos benéficos são parcialmente neutralizados pela dificuldade em manter o paciente com dietas desse tipo. Além disso, já dissemos que, para haver síntese protêica, é necessária a associação de proteínas animais e vegetais contendo tanto os aminoácidos essenciais quanto os não-essenciais. Mais ainda, o volume da dieta muito rica em vegetais, em pacientes inapetentes, é outro problema a ser considerado.
3-Dissacarídeos inabsorvíveis: O mais conhecido é a lactulose cuja apresentação comercial é um xarope contaminado com quantidades significativas de lactose, galactose e outros carboidratos, substâncias responsáveis pelo seu sabor adocicado2,4. Há uma forma cristalizada, pura, melhor tolerada, porém muito mais cara. Existem diversos outros, dos quais a lactose (especialmente nos pacientes com deficiência de lactase) e o lactitol são bons exemplos17. A lactulose talvez seja o agente que isoladamente tenha o melhor efeito em controlar a encefalopatia. Inicialmente achava-se que seu efeito devia-se a duas ações: diminuição da proliferação de bactérias produtoras de amônia pela acidificação do bolo fecal e ação fortemente laxante. Hoje sabe-se que há outros mecanismos envolvidos que incluem o transporte do íon amônia, e a incorporação de nitrogênio no metabolismo das bactérias, entre outros.
A lactose, açúcar derivado do leite, não é completamente absorvida e tem mecanismo de ação semelhante à lactulose. Por isso, derivados do leite são úteis em controlar a encefalopatia no homem4.
O lactitol também é um dissacarídeo não absorvido. Tem ação semelhante à lactulose e é melhor tolerado principalmente por ser menos adocicado, todavia é muito mais caro17.
Qualquer que seja o dissacarídeo usado, a dose a ser empregada deve ser cuidadosamente ajustada para produzir de duas a quatro evacuações amolecidas por dia.
4-Aminoáciodos de cadeia ramificada: Existem dados na literatura referindo que as soluções orais de aminoácidos ramificados são úteis em melhorar a encefalopatia e a condição nutricional do hepatopata. Todavia, existem ainda muitas controvérsias a este respeito8,26. De modo geral, aceita-se que as soluções orais são mais benéficas que as soluções parenterais. Estas últimas são mais fortemente questionadas3. É de ressaltar essas dúvidas principalmente se levarmos em conta a enorme repercussão no meio médico trazida pela hipótese do desbalanço entre aminoácidos aromáticos com os de cadeia ramificada como fator responsável pela encefalopatia dos hepatopatas. Além desse questionamento científico, deve-se frisar o seu alto custo para uso contínuo.
5-Antimicrobianos: Os agentes antimicrobianos são usados para inibir bactérias produtoras de urease e que promovem a transformação de uréia em amônia, principalmente nas porções mais distais do íleo e nas proximais do intestino grosso. O antimicrobiano mais difundido é a neomicina, usado tanto por via oral quanto misturado ao líquido de lavagem intestinal12. Esse antibiótico pertence ao grupo dos aminoglicosídeos e é dito que não é absorvido. Todavia, mais recentemente, descobriu-se que de 1 a 3% da droga é absorvida e pode produzir tanto oto quanto nefrotoxicidade a longo prazo. Por isso, seu uso deve-se restringir no máximo aos pacientes descompensados e por apenas 4 ou 5 dias. A neomicina é um agente ativo contra bactérias Gram. negativas e alguns estafilococos. Os anaeróbios Gram. negativos constituem um grupo de bactérias que produzem uma quantidade substancial de amônia a partir de peptídeos existentes no colon. Por isso outros agentes que combatem estas bactérias também são úteis no controle da encefalopatia. Dentre eles cita-se o metronidazol, droga bastante segura e tão eficiente quanto a neomicina para controle da encefalopatia2. A dose utilizada varia de 800mg a 1g/dia, fracionada em três a quatro tomadas.
6-Lavagem intestinal: Pode ser utilizada especialmente nos pacientes descompensados. Utiliza-se de 3 a 4 lavagens por dia. Deve-se prestar atenção no líquido a ser utilizado, considerando o estado hidreletrolítico do paciente. Em geral, utiliza-se simplesmente a água morna de torneira. Não há necessidade de água esterilizada. Todavia, se o paciente apresentar sódio plasmático muito baixo (125mEq/litro), é prudente fazer a lavagem diluindo a água de torneira com solução fisiológica, meio a meio. Um litro por vez é suficiente. Deve-se considerar também que parte deste líquido vai ser absorvida. Por isso, em pacientes com retenção hídrica, o que é uma constante nos hepatopatas, a utilização apenas de solução fisiológica vai produzir aumento da ascite e do edema. Pode-se também associar outras substâncias à lavagem como antimicrobianos, lactulose e manitol2,16.
Para resumir o tratamento dos doentes com encefalopatia, devemos avaliar em primeiro lugar se a alteração neuro-psíquica foi desencadeada por alguma das complicações tão comuns nos cirróticos. Devemos sempre lembrar da obstipação intestinal e ingestão excessiva de carne nos com anastomoses naturais ou cirúrgicas. Além disso, nos com cirrose sem anastomoses devemos sempre considerar uma das seguintes complicações: desequilíbrio hidreletrolitico por diuréticos, hemorragia digestiva, vômitos ou diarréia; ou infecções pulmonares, urinárias ou peritoniais, especialmente a peritonite bacteriana espontânea. Estas complicações devem ser abordadas simultaneamente com as medidas próprias para reverter a encefalopatia. No paciente que desenvolveu encefalopatia súbita, com doença hepática previamente conhecida, o controle da complicação neuro-psiquiátrica começa por lavagens intestinais e antimicrobianos (neomicina ou metronidazol). Apesar dos questionamentos sobre a eficácia das soluções parenterais de aminoácidos ramificados, estes devem ser introduzidos, nos comatosos, como parte de um aporte nutricional parenteral em doses diariamente progressivas de 0,25, 0,50 e 0,75g/kg/dia. Nos pacientes que desenvolvem encefalopatia progressiva, a abordagem faz-se inicialmente com a regularização do ritmo intestinal empregando lactulose em doses suficientes para 2 a 4 evacuações amolecidas por dia. Nesta situação, deve-se sempre associar um antimicrobiano, como o metronidazol, para ser utilizado a longo prazo. Outra alternativa é a norfloxacina na dose de 400mg por dia. A neomicina idealmente não deve ser usada. Recomenda-se ainda que o paciente ingira rotineiramente verduras cozidas e cruas, leite e derivados, sem restrição protêica. Essas medidas são suficientes para controlar mais de 90% dos casos. Para os raros pacientes que não respondem a essas medidas, deve-se recomendar restrição de proteína animal. Inicia-se com restrição total e a cada três ou quatro dias aumenta-se 10g por dia até atingir o maior nível compatível com o controle da complicação. Pode-se também usar preparados comerciais de aminoácidos de cadeia ramificada por via oral. Porém são produtos caros suportados apenas por curtos períodos. A sua eficácia é duvidosa.
Qualquer que seja a orientação nutricional no hepatopata deve-se sempre fracionar a dieta. Seis refeições por dia, em menores porções por vez, permitem um melhor aproveitamento nutricional, muitas vezes revertendo um estado catabólico persistente. A melhor forma de evitar tanto a encefalopatia quanto as outras complicações é buscar um regime nutricional compatível com anabolismo e reposição das proteínas corpóreas.