Anestesia para Transplante
Hepático na Hepatite Fulminante
INTRODUÇÃO
A hepatite fulminante é uma doença grave caracterizada pelo desenvolvimento de encefalopatia e coagulopatia dentro de até 8 semanas após o aparecimento de icterícia, em um paciente sem comprometimento hepático prévio. A causa mais comum é a hepatite viral (VHB na maioria dos casos), seguida pela hepatite medicamentosa (paracetamol, halotano, isoniazida, rifampicina, AINH, sulfonamidas, flutamida, valproato, carbamazepina, ecstasy, etc.) e intoxicação exógena (tricloroetileno, tetracloroetano, cogumelo Amanita phalloides, etc.). A recuperação espontânea da função hepática é de 70% na encefalopatia hepática graus I e II, e menor que 20% nos graus III e IV. A mortalidade se aproxima de 80% sem o transplante hepático e sua indicação está baseada nos critérios do King’s College Hospital (tabela 1).(1)
A hipertensão intracraniana (HIC), maior causa de mortalidade nestes pacientes (responsável por 50 a 80% dos óbitos), é secundária ao edema cerebral, que é o centro do processo responsável pela encefalopatia hepática.(2-4) A manifestação clínica da encefalopatia hepática varia de confusão a coma e mantém relação direta com a intensidade do edema cerebral e com a evolução da gravidade da hepatite fulminante. Ao mesmo tempo e de forma também rápida evoluem as manifestações extra-hepáticas, caracterizadas por hiperdinamismo circulatório com dependência crescente de suporte farmacológico a-adrenérgico, IRA, coagulopatia e hipoglicemia com progressão, sem o transplante, para agravamento da hipoperfusão cerebral e FMO.
Enquanto os distúrbios das funções de síntese do fígado doente podem até certo ponto ser contornados com a infusão de plasma fresco congelado, a insuficiência de suas funções metabólicas (remover, metabolizar e detoxificar toxinas), responsável pelo edema cerebral e pelas manifestações extra-hepáticas da falência hepática aguda, ainda não tem medidas de suporte satisfatório. Perspectivas tecnológicas visando o suporte e o tratamento da insuficiência hepática aguda estão em constante desenvolvimento e vão de sistemas de diálise hepática (biológicos e não-biológicos) ao xenotransplante (transplante entre indivíduos de espécies diferentes), porém atualmente a precocidade na realização do transplante ortotópico de fígado é a única opção terapêutica definitiva para estes pacientes.(1,5)
O PACIENTE
1. Cardiovascular: O hiperdinamismo circulatório é a alteração cardiovascular característica da insuficiência hepática aguda (IHA). Este perfil hemodinâmico é diretamente proporcional ao grau de disfunção hepática, sendo constituído de diminuição da resistência vascular sistêmica, aumento do índice cardíaco, hipotensão arterial e aumento da freqüência cardíaca. A patogenia do distúrbio circulatório é possivelmente decorrente do excesso de substâncias vasoativas (principalmente vasodilatadoras) que não são devidamente depuradas da circulação pela doença hepática, entre elas o óxido nítrico, o cGMP, o glucagon, a ferritina e o VIP.(6-7)
Na IHA, este predomínio de vasodilatação arteriolar é acompanhado de elevação da atividade simpática e da ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona, proporcionando aumento do volume sangüíneo total; porém, devido a sua má distribuição, a volemia central freqüentemente se encontra diminuída. A vasodilatação aumenta o shunt arteriovenoso periférico, elevando assim o conteúdo e a saturação de oxigênio no sangue venoso misto e diminuindo a diferença arteriovenosa de oxigênio.
2. Pulmonar: A hipoxemia (PaO2 <70 mm Hg em ar ambiente) é um sinal freqüente, decorre de shunt intrapulmonar por arteríolas pulmonares anormalmente vasodilatadas e do comprometimento da vasoconstrição pulmonar hipóxica. O controle dos níveis de CO2 e a proteção de vias aéreas constituem as principais indicações de intubação traqueal nestes pacientes.(8)
3. Coagulação: O fígado é o maior sítio de síntese de pró-coagulantes e anticoagulantes do corpo [exceto fator VIII, o ativador tecidual do plasminogênio (t-PA) e o inibidor do ativador do plasminogênio], e é também o maior sítio de depuração dos fatores da coagulação ativados, do t-PA e produtos de degradação da fibrina (PDFs).(9)
A coagulopatia na doença hepática avançada é decorrente da diminuição da síntese e função dos fatores da coagulação associada à diminuição do número de plaquetas e da agregação plaquetária. A trombocitopenia na IHA é freqüente e, com ou sem a presença de CIVD, se correlaciona diretamente com o sangramento. O tempo de protrombina (ou INR) é marcador independente de gravidade e prognóstico na doença hepática.
4. Renal: A primeira manifestação do comprometimento renal é a diminuição do fluxo sangüíneo renal, secundária à estimulação neuroumoral decorrente do aumento da atividade simpática e da ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona. A etiologia da doença renal na IHA é uma combinação de IRA hepatorrenal e necrose tubular aguda (NTA), e até 75% destes pacientes necessitam de terapia dialítica. A hemofiltração contínua é preferível à intermitente devido ao seu menor comprometimento sobre a hemodinâmica sistêmica e a pressão intracraniana (PIC).(8)
A síndrome hepatorrenal (SHR) é um quadro de IRA funcional caracterizada por intensa vasoconstrição renal sem lesão morfológica significativa, particularmente freqüente na doença hepática crônica, mas também ocorre na aguda. A patogênese inclui hipovolemia central com diminuição do retorno venoso em decorrência da vasodilatação esplâncnica, se manifestando por oligúria (<500 mL/dia), creatinina sérica >1,5 mg/dL (clearance <40 mL/min) e baixo sódio urinário (<10 mEq/ L).(10) O diagnóstico diferencial inclui IRA pré-renal (que responde à expansão volêmica) e NTA (que apresenta sódio urinário >10 mEq/L).(10) A SHR é um quadro grave, potencialmente reversível com o transplante de fígado, e exige a manutenção da volemia para prevenir lesão pré-renal nestes rins já comprometidos.(11)
5. Sistema nervoso central: A encefalopatia hepática é uma síndrome neuropsiquiátrica característica da IHA. A progressão da encefalopatia na insuficiência hepática aguda implica agravamento do prognóstico e suas manifestações clínicas são, de um modo geral, potencialmente revertidas com restabelecimento da função hepática ou com o transplante do fígado.
O edema cerebral é o centro do processo responsável pela encefalopatia hepática.(3-4) Na insuficiência hepática, a amônia deixa de ser convertida em uréia pelo fígado com resultante hiperamonemia e baixa uréia sérica. Em situação de hiperamonemia, o cérebro detoxifica a amônia no astrócito em glutamina, aminoácido com potente efeito osmótico, gerando edema glial e alteração da comunicação interneural, potencializando inclusive a neuroinibição gama-aminobutírica (GABA).(12)
A repercussão clínica depende da velocidade do aumento da amonemia e da capacidade adaptativa do SNC, com manifestações clínicas diretamente proporcionais à intensidade do edema cerebral, que vão de confusão mental a decorticação, descerebração e anisocoria (tabela 2). Assim, deve-se evitar manobras ou fármacos que aumentem a pressão intracraniana em todos os pacientes com encefalopatia, independente do grau.
Nos pacientes com hipertensão intracraniana refratária maior que 50 mm Hg associada à pressão de perfusão cerebral menor que 40 mm Hg por mais de 2 horas, o transplante hepático pode não ser mais uma opção terapêutica.(1-13)
O INTRA-OPERATÓRIO
1. Anestesia: A indução anestésica é normalmente realizada após monitorização não-invasiva convencional, exceto nos pacientes com encefalopatia graus III/IV ou em uso de drogas vasoativas.
Na indução, o risco sempre presente de aspiração pulmonar indica intubação com seqüência rápida de drogas e manobra de Sellick, após administração de propofol ou barbitúrico associado a opióide, e bloqueio neuromuscular com succinilcolina. Na manutenção da anestesia deve-se evitar o uso de anestésicos inalatórios, principalmente nos pacientes com diminuição da complacência cerebral e naqueles dependentes de suporte farmacológico hemodinâmico a-adrenérgico. A anestesia é complementada com opióides e bloqueadores neuromusculares (BNM) de farmacocinética menos comprometida pela doença hepática terminal, como fentanil ou sufentanil, associado a atracúrio ou, preferencialmente, cisatracúrio, pela sua menor liberação de histamina, ambos BNM de eliminação órgão-independente.
Nos pacientes com encefalopatia hepática por hepatite fulminante, todo o esforço deve ser concentrado na manutenção da pressão de perfusão cerebral (PPC = PAM – PIC) maior que 50 mm Hg para evitar hipoperfusão cerebral e menor que 65 mm Hg para evitar hiperemia cerebral.(14) Nos pacientes em encefalopatia grau III, a intubação orotraqueal deve ser prontamente instituída no pré-operatório para proteção de vias aéreas e para que se possa dispor precocemente da hiperventilação como parte do arsenal terapêutico. Naqueles que evoluíram para o grau IV deve ser considerada a instalação do cateter de monitorização de PIC, fundamental no manejo destes pacientes.(15)
No intra-operatório, pacientes em encefalopatia graus III e IV são considerados os de maior risco para isquemia cerebral. Enquanto as alterações extra-hepáticas, de um modo geral, melhoram imediatamente com o explante do órgão nativo, o edema cerebral tem resolução mais lenta e picos de HIC podem ainda ocorrer após a reperfusão do enxerto e no pós-operatório imediato, apesar de bom funcionamento do enxerto.(16) Os períodos que mais freqüentemente cursam com aumentos da PIC e diminuição da perfusão cerebral são a fase I e a reperfusão do enxerto.(16,17) Cefaloaclive (20º) durante todo o procedimento, e o uso intermitente de manitol (20% - 0,5 a 1,0 g/kg em 20 minutos), tiopental (125 mg em bolus) e hiperventilação toda vez que a PIC ultrapassar 25 mm Hg, fazem parte da estratégia protetora cerebral recomendada.(8)
Nos pacientes com HIC refratária à terapia convencional, a hipotermia moderada (33,5ºC) previne o aumento de PIC durante o transplante hepático.(17,18) Seus efeitos protetores parecem ser potencializados pela diminuição da produção e da resposta em órgãos-alvo dos produtos tóxicos liberados pelo fígado necrótico.(18) O risco aumentado de depressão cardíaca, arritmias, hipocoagulação sangüínea e diminuição da função renal devem ser considerados frente ao seu efeito neuroprotetor.
2. Monitorização e equipamentos: O transplante hepático é um procedimento de alta complexidade, em que os resultados demonstraram estar na dependência dos avanços tecnológicos para contornar a instabilidade hemodinâmica multifatorial e alterações metabólicas que caracterizam o procedimento. A monitorização invasiva deve incluir, ao menos, uma linha arterial e dois acessos venosos de calibre maior que 8 Fr (um para posicionamento do cateter de Swan-Ganz) (tabela 3).
A monitorização da pressão intracraniana (PIC) fornece informação essencial no perioperatório do transplante do fígado em pacientes com hepatite fulminante. Nestes pacientes, para reduzir o risco de hemorragia intracraniana, a colocação do cateter de monitorização de PIC deve ser feita após a correção dos distúrbios da coagulação (INR <1,5 e plaquetas >50000 céls./mm3) e preferencialmente locado na posição intraventricular.
Os equipamentos de suporte devem estar à pronta disposição e sob constante supervisão, podendo ser classificados em quatro grupos, conforme apresentado na tabela 4.
A monitorização da coagulação é realizada de rotina durante o transplante hepático visando diminuir o sangramento e a quantidade administrada de hemocomponentes, que no transplante de fígado estão associados a aumento da morbimortalidade perioperatória.(18,19) Por meio dos testes de coagulação tradicionais (TP, INR, TTPa, TT, fibrinogênio, D-dímero) ou pela tromboelastografia (TEG), e da contagem plaquetária, a monitorização deve indicar se existe coagulopatia, identificar a sua causa e a terapia adequada de forma rápida, otimizando o uso de hemocomponentes. A dificuldade de avaliação e o tempo de realização da bateria dos testes tradicionais de coagulação ainda dificultam a sua implementação intra-operatória e favorecem a incorporação da TEG, que de fato é o único teste que através de uma única análise sangüínea fornece informações a respeito do balanço entre coagulação e fibrinólise, com agilidade e facilidade de realização e interpretação, permitindo inclusive a análise in vitro da terapêutica.(20) O perfil global da coagulação pode ser qualitativamente ou quantitativamente interpretado em termos de estado hipo, normal ou hipercoagulável e permite também a análise de seu grau de lise (figura 1). A nossa estratégia intra-operatória está baseada na TEG junto a contagem laboratorial do número de plaquetas. A coagulação sangüínea, desta forma, é monitorizada pela clínica e orientada laboratorialmente e o uso de componentes sangüíneos fica limitado a tratar aqueles distúrbios da coagulação que são clinicamente importantes, particularmente quando estes têm confirmação laboratorial.
3. Transplante: A cirurgia, para fins didáticos, compreende três fases. A fase I ou pré-anepática se inicia na indução anestésica e compreende a hepatectomia, portanto finaliza com a exclusão vascular hepática e retirada do órgão nativo. A fase II ou fase anepática se estende da exclusão vascular hepática até a revascularização do enxerto. A fase III ou neo-hepática se inicia com a reperfusão hepática e com o restabelecimento do retorno venoso ao coração e finaliza no fechamento da parede abdominal.
3.1. Pré-anepática: A fase I é, em geral, a fase mais trabalhosa da cirurgia, sendo a intercorrência mais comum o sangramento com todas as suas conseqüências - hipovolemia, hipocalcemia, hipotermia e transfusionais. O nosso protocolo de reposição volêmica intra-operatória está orientado para manter um hematócrito entre 25 e 30% durante todas as fases do transplante.
A hipocalcemia (cálcio ionizado <1,13 mmol/L) ocorre com freqüência nesta fase, principalmente durante a administração de hemocomponentes. O citrato, presente nos hemocomponentes, que é rapidamente metabolizado pelo fígado normal, na doença hepática tem a sua depuração da circulação diminuída, tornando estes pacientes particularmente sensíveis à intoxicação pelo citrato. Tipicamente, a hipocalcemia se manifesta com depressão miocárdica (hipotensão arterial, aumento das pressões de enchimento) e na eletrocardioscopia pode ser detectado alargamento do intervalo QT. O tratamento consiste na administração de cloreto de cálcio (10 mg/kg) ou gluconato de cálcio (30 mg/kg).
O magnésio iônico também tem os seus níveis séricos diminuídos pela taxa de infusão de citrato e a hipomagnesemia está associada a depressão miocárdica e arritmias cardíacas.(21) Apesar de não ser freqüente a sua dosagem intra-operatória, quadros de depressão miocárdica e arritmias, após politransfusão ou na reperfusão, refratários à terapêutica convencional, principalmente naqueles pacientes com hipomagnesemia pré-operatória, indicam a reposição de magnésio.
O risco de hipoglicemia está sempre presente na insuficiência hepática por diminuição do estoque de glicogênio hepático, comprometimento da gliconeogênese e diminuição da depuração da insulina pelo fígado doente e, na IHA, monitorização intensiva deve ser realizada nas fases I e II do transplante.(22,23)
A hipopotassemia é comum na hepatite fulminante independente do comprometimento renal, porém deve-se evitar correções agressivas em antecipação ao período hipercalêmico que acompanha toda reperfusão hepática. Nos pacientes oligúricos com hiperpotassemia, a diálise intra-operatória deve ser considerada precocemente na cirurgia.
3.2. Anepática: As alterações hemodinâmicas mais significativas do transplante hepático ocorrem no início e no final desta fase, que de um modo geral dura cerca de 60 minutos. Apesar do hiperdinamismo circulatório poder melhorar com a retirada do órgão nativo, as alterações no retorno venoso secundárias à hepatectomia no início desta fase, junto às alterações hemodinâmicas da reperfusão no final da mesma, fazem deste período o de perfil hemodinâmico mais conturbado da cirurgia.
Esta fase se inicia com o pinçamento da veia porta (fluxo: 1300 mL/min) e, dependendo da técnica operatória, também com a interrupção do fluxo sangüíneo da veia cava inferior, sendo hemodinamicamente caracterizada por diminuição do índice cardíaco, aumento da resistência vascular periférica e baixas pressões de enchimento cardíaco.
A hepatectomia pode ser realizada por duas técnicas cirúrgicas, pela técnica convencional ou pela técnica piggyback, que se diferenciam pelo pinçamento ou não da veia cava inferior e, portanto, pelo grau de comprometimento do retorno venoso cardíaco durante toda a fase anepática. A técnica convencional requer pinçamento total da veia cava inferior para a extração hepática, com redução de até 50% do débito cardíaco. Na técnica de piggyback, a veia cava fica intacta durante o implante do enxerto, proporcionando melhor estabilidade hemodinâmica neste período. A escolha de uma técnica sobre a outra depende tanto da preferência da equipe cirúrgica como da presença de dificuldades técnicas apresentadas durante a hepatectomia.
Na fase II, com a ausência total da função hepática, a hipocalcemia, a hipomagnesemia, a hipotermia e a hipoglicemia têm sua ocorrência mais freqüente e mais intensa.
A hiperfibrinólise pode ter seu quadro agravado nesta fase por ausência de depuração hepática do t-PA. Pacientes com doença hepática avançada, com fase II prolongada, são os que mais comumente apresentam hiperfibrinólise laboratorial com importante manifestação clínica; nestes, a terapia deve ser realizada com o ácido aminocapróico na dose de 50 mg/kg ou tranexâmico na dose de 10 mg/kg para o controle clínico da hiperfibrinólise até que o enxerto funcione.
O objetivo principal da fase anepática é preparar o doente para a reperfusão hepática, considerada o momento do transplante onde as alterações hemodinâmicas ocorrem com maior freqüência e intensidade, recomendando-se, cinco minutos antes da reperfusão aumentar a fração inspirada de O2 para 1,0.
3.3. Neo-hepática - a reperfusão: a reperfusão hepática, ou seja, a restauração do fluxo sangüíneo hepático, é um momento crítico do transplante de fígado e o período mais freqüente de instabilidade hemodinâmica,(25-28) aumento da PIC e de grande risco a isquemia cerebral nos pacientes com hepatite fulminante.(16,17)
A resposta hemodinâmica ocorre pela súbita liberação na circulação de sangue acidótico, hiperpotassêmico, rico em substâncias vasoativas e agentes tóxicos liberados tanto pelo enxerto no processo de isquemia e reperfusão hepática como pelos acumulados na circulação esplâncnica estagnada durante o pinçamento de veia porta.(29)
Do ponto de vista hemodinâmico, este período se caracteriza por queda da pressão arterial e da resistência vascular sistêmica com aumento do índice cardíaco, que geralmente persiste por uma ou duas horas.(27)
A síndrome pós-reperfusão é um fenômeno hemodinâmico agudo e transitório de colapso cardiovascular que sucede a revascularização, ocorrendo diminuição da pressão arterial, da resistência vascular sistêmica e da contratilidade miocárdica acompanhado do aumento das pressões de enchimento, da resistência vascular pulmonar (manifestada por aumentos das pressões da artéria pulmonar média e ocluída)(30) e de bradicardia,(31) podendo evoluir abruptamente com parada cardíaca.(32) A síndrome pós-reperfusão ocorre em cerca de 30% dos transplantes hepáticos e classicamente tem seu padrão hemodinâmico caracterizado por queda da pressão arterial média de mais de 30% dos valores pré-reperfusão, com duração maior que 1 minuto, ocorrendo nos primeiros 5 minutos da reperfusão.(27) Outros grupos definem a síndrome como queda da pressão arterial média a valores inferiores a 60 mm Hg nos adultos e 50 mm Hg nas crianças nos primeiros minutos da reperfusão.(26) Doadores e enxertos marginais (alto grau de esteatose, história de parada cardíaca, dependentes de elevado suporte farmacológico a-adrenérgico, hipotensos e com idade maior de 50 anos) e tempo de isquemia prolongado constituem fatores de risco ao desenvolvimento da síndrome pós-reperfusão e de hiperpotassemia após a revascularização do enxerto.(7,33) A síndrome tende a ser mais grave no primeiro minuto da reperfusão e de um modo geral deixa de ser crítica após o 5º minuto; pressão arterial média menor que 60 mm Hg é preferencialmente tratada com adrenalina em bolus de 50 µg e com a infusão de fluidos orientada pelas pressões venosas, e a necessidade de suporte adrenérgico contínuo é julgada pela evolução dos dados hemodinâmicos.
Atualmente, no intra-operatório, sua profilaxia é a única forma de atenuar os efeitos hemodinâmicos da reperfusão e esta tem como base o rigoroso controle hemodinâmico por meio da monitorização invasiva associado ao controle metabólico e hidroeletrolítico nos períodos que antecedem a reperfusão.
A hiperpotassemia é a alteração eletrolítica de conseqüências mais graves na reperfusão, tornando obrigatório medidas profiláticas para manutenção do potássio sérico em níveis inferiores a 4,0 mEq/L durante a fase anepática. Nível de potássio maior que 5,0 mEq/L na fase anepática constitui fator de risco ao desenvolvimento de hiperpotassemia na reperfusão(34) e deve ser tratado de forma agressiva antes da reperfusão.(22,35) Eletrocardioscopicamente, a hiperpotassemia se manifesta por ondas T apiculadas e simétricas e nos casos mais graves com alargamento do QRS, podendo evoluir para TV ou FV, sendo a administração de cálcio e bicarbonato de sódio as medidas mais eficazes em deslocar o potássio para o meio intracelular com rapidez suficiente para tratar a hiperpotassemia da reperfusão.
A coagulopatia na fase neo-hepática é decorrente de um aumento exacerbado e transitório da atividade do t-PA, da atividade proteolítica, da liberação de heparina ou fatores heparine-like do enxerto, hipotermia e acidose, resultando em um quadro de hiperfibrinólise e hipocoagulação.(36,38) A coagulopatia, se o fígado implantado funciona adequadamente, se restringe à primeira hora da reperfusão e não requer intervenção.
A necessidade crescente de suporte farmacológico hemodinâmico, hiperfibrinólise grave e prolongada, hipocalcemia, acidose metabólica persistente, hipotermia refratária, hipoglicemia e oligúria são sinais clássicos de disfunção do enxerto.
Tipicamente caracteriza o bom funcionamento do enxerto o fato das alterações hemodinâmicas, metabólicas, da coagulação, eletrolíticas e ácido-básicas da reperfusão serem autolimitadas (tabela 5).
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Dr. Joel Avancini Rocha Filho1 - Dr. João Plínio Souza Rocha2 - Dr. Ricardo Souza Nani3
1Médico Supervisor da Equipe de Transplantes da Divisão de Anestesia do Hospital das Clínicas da FMUSP.
2Médico Supervisor da Divisão de Anestesia do Hospital das Clínicas da FMUSP.
3Médico Colaborador da Equipe de Transplante do Fígado do Hospital das Clínicas da FMUSP.